A tenda cigana e a Espiritualidade da Resiliência II – Por Dom Jorge Pierozan

Cada  grupo  cigano  tem  suas  regras,  suas  leis.  Sempre  há  um  chefe,  que é muito respeitado, que é consultado para  tudo, que  sabe de  tudo. As crianças e os anciãos são muito valorizados. As crianças maiores ajudam a cuidar das menores. Todo o grupo se preocupa com o crescimento  e  a  educação  de  cada  criança.  O  grupo  vibra  com  cada  novo  nascimento.  Os nômades vivem a partilha. As famílias são muito unidas.

O  relacionamento  com  as  sociedades  sedentárias  pode-se  dizer  que  é  um  tanto “delicado”.  Os  ciganos,  os  circenses  e  os  parquistas  têm  contato  com  as sociedades estabelecidas, mas é possível afirmar  que desenvolve-se  um  relacionamento puramente  formal, isto é, existe a necessidade de criar  intercâmbios para  facilitar o comércio, para que as pessoas assistam  aos  espetáculos,  comprem  o  tacho  e  o  tapete,  brinquem  no  carrossel,  comprem  a pipoca…

Fora  isso,  o mundo  dos  nômades  é  um  outro mundo,  praticamente  isolado,  diferente, quase misterioso, que tem governo próprio, regras bem definidas e, neste sentido, quanto menos contato  com  o  mundo  “exterior”,  melhor.  Talvez  por  causa  dessa  autonomia  e  desse “descompromisso” aparente, o mundo sedentário os discrimine tanto.

A  prática  da  espiritualidade  no  acampamento  cigano  requer  uma  total  confiança na Providência. É um completo abandonar-se ao desconhecido, ao  improviso, ao  “venha o que vier” e, apesar de todas as agruras, ir adiante, seguir a estrada da vida. Com eles, também temos sede de liberdade; com eles, ansiamos por um mundo melhor.

Num  sentido  figurado,  resiliente  é  a  pessoa  que  tem  a  capacidade  de  vergar  sem quebrar, que  tem  resistência ao  choque. As perseguições  sofridas desde os primórdios,  criaram nos  ciganos uma  capacidade de adaptação, uma elasticidade dificilmente encontrada em outras culturas.  O  preconceito  foi  armazenado  e  assimilado,  tornando-se  força  para  a  resistência.  A espiritualidade na tenda cigana é, antes de tudo, o que chamo de Espiritualidade da Resiliência. É nesta fonte que tenho matado a sede!

Há um dito cigano que fala assim: “A Terra é minha pátria, o céu é meu teto e a liberdade é minha religião”. Os sedentários, que correm contra o relógio, que lutam diariamente contra toda sorte de medos e  fobias, que pagam uma  infinidade de  impostos, que  fazem – para sobreviver – malabarismos  mais  espetaculares  do  que  o  povo  do  circo,  não  entendem,  não  aceitam,  não podem conformar-se com o fato de que os nômades ignorem  toda essa seqüência e que, mesmo assim, consigam viver com alegria e liberdade. Com mais saúde também, eu diria.

Padre Jorge Pierozan nas comunidades ciganas de Sousa/PB

Ah,  como  é  maravilhoso  o  abandono proporcionado  pela  Espiritualidade  das  Tendas! Como é salutar a mística que permeia a vida dos acampamentos! “Se você dirigir seu coração a Deus, e para Ele estender as mãos; se não hospedar a injustiça em sua tenda, então você poderá levantar o rosto sem mancha, e não terá medo nas dificuldades”. (Jó 11,13-15)

Vocacionados  à  liberdade,  os  nômades  nos  desafiam  a  seguir  caminhos.  Ensinados a esquecer  um  passado  inconveniente,  provocam-nos  com  a  melodia  sempre  nova  da Espiritualidade das Tendas: um mundo de paz é possível.

Que o Bem-Aventurado Zeferino do Cavalo Branco – o cigano Mártir da Fé – interceda por todos nós. E que o Duvel Barô continue nos abençoando!

São Paulo, 05 de Abril de 2010.

Pe. Jorge “Rocha” Pierozan
(Hoje Dom Jorge Pierozan, Bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo-SP)

Vice-Presidente da Pastoral dos Nômades do Brasil

3 comentários em “A tenda cigana e a Espiritualidade da Resiliência II – Por Dom Jorge Pierozan”

  1. “É um completo abandonar-se ao desconhecido, ao improviso, ao “venha o que vier” e, apesar de todas as agruras, ir adiante, seguir a estrada da vida. Com eles, também temos sede de liberdade; com eles, ansiamos por um mundo melhor.” Belas palavras , palavras de quem conhece o que diz.

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